Simples, normal. Era assim que poderiam definir-me. Aos olhos humanos a calmaria que a menina passava a todos era incrível. Controlada, simpática, realista. Uma pessoa que gerava confiança quando sorria, e empinava o nariz quando o seu orgulho era esbofetado. Uma pessoa que não dava-se por vencida, mas sim continuava em pé, mesmo com as dores de cólera que pudesse estar sentindo.
Mas o que os olhos humanos não vem, é por que a névoa o cobre.
Eu não sabia da verdade, por que eu iria saber. Quase todos não sabiam, em verdade. Mas coisas estranhas começaram a acontecer comigo e eu fui perdendo a minha sanidade aos poucos. Ou achava que estava.
Sentia que todos observavam-me, que todos tentavam me derrubar. As letras sempre flutuavam no papel, mas isso era normal, até o ponto em que elas começaram a formar palavras assustadoras, desejos de morte, desejos de vingança.
Chegava em casa com os olhos arregalados, tentando observar tudo o que se encontrava em minha volta. As pessoas passaram a dar-me medo, a perseguir-me. A única que parecia não me observar, não julgar-me era minha cobra. Doce Safya. Todos tinham medo de mim principalmente por causa dela. Uma cobra venenosa, assustadora, mas que além de tudo era minha única amiga, a única que não se importava com meus gritos de loucura, e sim sibilava para mim como se pedisse para eu ter calma. Calma, como sempre todos os outros dias eu vinha me mostrando. Uma menina calma.
Mas era difícil continuar, com os olhos sempre mostrando cada vez mais o que ocorria ao meu redor. Não, minha calma tinha ido embora, até o dia em que eu havia descoberto a verdade.
Um dia eu estava na escola, com os olhos pesados pelas noites mal dormidas, com olheiras que já vinham ganhando uma cor roxa, tentando ao máximo possível ignorar as letras que dançavam ao meu redor. Todos os olhares curiosos caiam sobre mim, como se eu fosse um monstro que estivesse a ponto de atacar todos. Mas a pergunta era: e eu não faria mesmo isso, se minha sanidade não estivesse boa como sempre estivera?
As letras formavam palavras em minha frente, palavras como “mentira”, “farsa”, “errado”, “anormal”, “perigosa”.
Levantei a mão.
-O que é, Catelin? – A professora olhou irritada para mim, como se pedir para sair por estar passando mal fosse muito errado. Quando levantei os olhos roxos para ela, a primeira coisa que eu pude ver em seu olhar era repulsa. Desejo de me ver longe da mesma. Algo que eu já estava me acostumando a ver nas pessoas. Ela mandou eu sair de sala e ir para a enfermaria, mas meu mundo insano já me enlouquecia tanto que eu só queria ir para um lugar: para onde estava o olhar querido, calmo e atencioso de Safya.
Corri para casa. Mesmo que o cansaço não permitisse, corri. Corri mais do que o normal. Abri a porta com grosseria e subi as escadas em segundos. Não havia ninguém para reclamar do meu barulho, nem para perguntar por quê eu não estava na escola. Se estivessem nem sequer se preocupariam. Abri a porta do meu quarto, e lá estava Safya, no chão, encarando-me com os olhos amarelados. Suspirei e deixei que ela se enrolasse por meu corpo, e subisse até meu pescoço. – O que está fazendo fora do aguário, Safya...? Ah, tanto faz, não é? Tanto faz tudo. – Acariciei a cabeça dela como se fosse um cachorrinho e sentei em minha cama. – O que está acontecendo, Safya? Por quê tudo fica me dizendo essas coisas? As palavras sempre flutuaram, mas agora elas ficam me contando segredos? Por quê ficam me perseguindo, me olhando com repulsa? Antes eles tinham medo de mim, Safya... Medo!
Safya sibilou em meu ouvido e desceu pelo meu braço. Eu gostava da cosquinha que seu corpo fazia quando se rastejava pelo meu, eu gostava de sentir o medo de um dia ela ficar insana como eu e então me picar. Eu gostava do fato de que um dia eu poderia morrer por causa da minha melhor amiga reptiliana. Ela percorreu o caminho até a porta de meu quarto e virou novamente para mim. Seus olhos diziam que eu devia segui-la, diziam que tudo melhoraria e eu acharia meu lugar. Diziam que as palavras não iriam mais flutuar, e que agora tudo o que elas formassem seriam de meu gosto, e não para meu medo.
Levantei da cama como se ela comandasse todos os meus sentidos e a segui. Ela rastejava pelos cantos mais estranhos da cidade, expulsava do caminho todos os assustados que viam a cobra passando e guiando sua dona. Encarava com olhos vingativos os que vinham atrás de mim, pessoas que quando eu virava para trás, podia reconhecer os rostos. Novamente as letras formavam a palavra “perigo” na minha frente, e meu corpo cansado conseguia mais energia para locomover-se atrás de Safya.
Então, sem eu ter noção do tempo que tinha caminhado atrás dela, com os pés dentro das botas doendo, e com a roupa ridícula de sainha da escola dando-me frio naquela noite; Safya parou e subiu novamente por meu corpo. Enrolou-se em meu pescoço e sibilou, apontando os olhos para a frente. “Aqui,” diziam os olhos dela “aqui é seu lugar”. Levantei os olhos, e dessa vez as palavras não me assustavam, dessa vez as letras não dançavam em minha volta zombando de mim. Eu sabia o que aquilo era, algo dentro de mim fazia com que eu me sentisse em casa, como se sempre tivesse sabido daquele lugar. E lembrei que Safya havia me contado.
Sorri, um dos poucos sorrisos que tinha consiguido dar depois de minhas longas semanas de loucura. – E aqui aceitam animais de estimação, Safya?
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